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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

[CRÔNICA] DEUS ME LIVRE DE PEPINO ANTÔNIO!





Eu era criança. Anos de 1973-1974. Lembro do som fraco do rádio de pilhas, de marca Nordson que meu pai ligava toda madrugada. Um verso das músicas sertanejas-caipiras que nunca esqueço era cantando quase falado, num grito da dupla sertaneja Jacó e Jacozinho:
__ Deus me livre de pepino Antônio!.
Esse gritinho era dado logo após uma repetição negativa:

Eu não quero mais pepino,
eu não quero mais pepino.

Parecendo uma comediazinha musical, eu achava engraçada aquela toada. E sempre acordava para ouvi-la. Acho que naquele momento fazia um sucesso danado! E o meu pai, sempre foi muito apreciador de músicas e do rádio. Quem o conhece, sabe. O violão e o cavaquinho ainda são seus companheiros, mesmo ao patamar dos 80 anos.
Pois bem! Mas, essa lembrança de um verso musical dos anos de 1970 não me remete apenas à graça que ele tinha e nem do bis no refrão da peça. É que a letra narra a história de um agricultor que queria plantar melancia porque o preço estava bom; arou a terra, comprou a semente, mas, quando a plantou, só nasceu pé de pepino. Foi enganado pelo vendedor da semente. Perdeu o plantio e ainda enjoou o pepino por dois motivos, de tanto que deu e não vender porque não tinha um preço bom. Claro, o produto acumulou.
Mas, depois de certo tempo, depois de várias leituras e análises sobre o contexto da época, descobri que a tal letra, nada mais era do que a paródia da vida real. Coisas que eu, de pouca idade e leitura, muito criança ainda, não compreendia. Embora vivesse os fatos: a miséria, a fome, a necessidade, a falta de moradia e vidas digna. Chegando ao ponto de ver irmãos meus morrerem, por motivos que só depois descobri, nas aulas de ciências, que se ligavam àquela miséria, causada pelo abandono dos governos da época.  
Nós morávamos em uma casa de taipa. No início era que só o telhado, porque ia sendo feita aos poucos: colocava-se a madeira de sustentação do teto, depois pregavam-se as varas, e por fim, tapava-se com barro. Nós, começamos a morar na casa antes de tapar. Nessa condição, a madrugada também era sinônimo de frio e medo. Se não fosse o radinho de pilha e as músicas tocadas no programa sertanejo do Zé Béttio, o momento era só de medo e frio mesmo.
Eram eu e meus irmãos outros irmãos, naquele momento quatro: eu, Vilma, Patrício e Raimundo. Uma irmãzinha já havia ido embora como anjo, aos seis meses de vida. Foi diarreia, mas a minha mãe dizia que tinha sido “quebranto”. Nunca a questionei, não nessa época. O intrigante é que as condições da nossa alimentação eram muito duvidosas quanto a ingerirmos o suficiente em nutrientes que realmente fossem adequados a uma vida saudável.
Nós tínhamos que suportar a ideia do amanhecer e não ter o quebra-jejum. No almoço, o cardápio repetido do feijão, óleo e farinha. Quando tinha a farinha. Isso tudo, ao que parece, na minha interpretação atual, pela mesma falta de “sorte” que era relatada na música da dupla que dizia:

Eu não quero mais pepino,
eu não quero mais pepino.

 Uma “falta de sorte” que só os coronéis do mandonismo e clientelismo simpático sabiam, pelo preço por cabeça. Sim. Votos que eram contados por cabeças. Depois esse tipo de domínio político adquiriu um nome próprio. Mas, ei nem vou dizê-lo, tenho certeza que muita gente sabe. Talvez não admita, mas, sabe.
Aliás, admitir os fatos mais tenebrosos dessa época é algo realmente difícil. Não sei se há memórias diferentes da minha, que não faltou caixinhas para guardar cada detalhe e trazer comigo até hoje as mais terríveis experiências de forme da infância. Nem vou enumerar, são muitas, e tristes. Mas, eu uso-as como lição na minha vida diária. Em especial para observar fatos que se relacionam com a história do país e os seus reflexos na vida do povo. Só sei que muitas das minhas amiguinhas da época, parecem ter esquecido. Ou lavado a mente, tanto quanto a alma. Eu não.
Minhas lágrimas ainda escorrem quando lembro dos copos de água que tomava para encher o estômago e aguentar até 11:30 sem comer. Hora que terminava as atividades da escola, lugar onde aprendi quase tudo da vida. Em casa eu só aprendi a gostar de ler, com minha avó analfabeta. Ela costumava narrar histórias oralmente para mim, e eu as descobri depois impressas nos livros. Nunca virei bruxa má, nem feiticeiro do pé grande, nem meu nariz cresceu e nem me iludi com sapatinhos de cristal. Essas histórias me ensinaram outros valores, apesar de nos seus enredos constarem toda atitude originada de sentimentos ruins: inveja, maldade, crueldade. Basta citar a Branca de Neve para compreender.
Mas, nesse tempo, o fato que mais me chamou atenção na minha casa foi a morte de Raimundo, um dos meus irmãos que não resistiram às mazelas de um tempo que hoje é desejado por muitos. Ele tinha mais de uma no, quase dois. Já andava e tudo. Mas, o tal do “quebranto” o fisgou. Passei dias tristes porque ele era um menino que eu ajudava a cuidar. Naquele tempo, as meninas começavam cedo a ajudar a mãe. Até hoje eu acho que esse era um costume que não devia ter acabado. Aquele quebranto matou meu irmão. E eu até hoje lembro do seu rosto.
Ficamos três novamente. Em 1974, nasce mais um irmão e pronto. A conta se encerra. Mas ele nasceu prematuro, de sete meses. Minha mãe, até hoje diz que foi porque ela presenciou uma briga e teve um “vexame”. Hoje em dia dizem por aí que é porque quando a mulher não cuida dos dentes, tem muita cárie, aí o bebê pode nascer antes do tempo. Já eu, pela bagagem de conhecimento que adquiri posteriormente, duvido muito que tenha sido por isso. Acredito que a fome, as condições alimentares, a falta de um sistema de saúde mais adequado à mulher gestante naquela época tenha sido a causa. Mas, eu sei que isso pode ser contestado, porque tem gente que tem certeza que os conhecimentos científicos foram desconstruídos. Vejo mesmo que alguns foram mudados para beneficiar os salvadores da pátria que dizem estar em falência.
Realmente não está bom. Olhar o nosso tempo e ver que as suas experiências, os fatos da sua memória, o que você viveu e as lições que aprendeu, e até o tempo que você já viveu não podem ser considerados como exemplo, nem para seus filhos, não é um tempo bom. Quando a verdade é evitada de ser ouvida para se dá credibilidade a projetos no escuro, não é um tempo bom. Nesse formato, é um tempo que fere, muito mais por dentro do que por fora. Muito mais do que muitos nem imaginam quando nem olham ao seu redor e somente se importam em atacar para “ganhar”, nem sei o que.
 Vivemos um tempo sombrio, de farpas, de excessiva competição pelo poder, de discursos que muito mais ferem do que esclarecem, de sede de morte, de tortura e de sangue. De obsessiva busca pela demonstração de superioridade, de ser melhor, mais correto, mais moralista e de estranha polarização por um lugar no céu, seja este material ou espiritual, tenho certeza: no terceiro dia de feijão, óleo e farinha, a frase “eu não quero mais pepino” vai ser repetida dezenas de vezes e não será no refrão de uma música.
Essa possibilidade é o que me faz continuar com o gritinho de Jacó e Jacozinho:

__ Deus me livre de pepino Antônio!

Mônica Freitas

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