Eu era criança. Anos de 1973-1974.
Lembro do som fraco do rádio de pilhas, de marca Nordson que meu pai ligava toda madrugada. Um verso das músicas
sertanejas-caipiras que nunca esqueço era cantando quase falado, num grito da
dupla sertaneja Jacó e Jacozinho:
__ Deus me livre de pepino
Antônio!.
Esse gritinho era dado logo
após uma repetição negativa:
Eu
não quero mais pepino,
eu
não quero mais pepino.
Parecendo uma comediazinha
musical, eu achava engraçada aquela toada. E sempre acordava para ouvi-la. Acho
que naquele momento fazia um sucesso danado! E o meu pai, sempre foi muito
apreciador de músicas e do rádio. Quem o conhece, sabe. O violão e o cavaquinho
ainda são seus companheiros, mesmo ao patamar dos 80 anos.
Pois bem! Mas, essa lembrança
de um verso musical dos anos de 1970 não me remete apenas à graça que ele tinha
e nem do bis no refrão da peça. É que
a letra narra a história de um agricultor que queria plantar melancia porque o
preço estava bom; arou a terra, comprou a semente, mas, quando a plantou, só
nasceu pé de pepino. Foi enganado pelo vendedor da semente. Perdeu o plantio e
ainda enjoou o pepino por dois motivos, de tanto que deu e não vender porque não
tinha um preço bom. Claro, o produto acumulou.
Mas, depois de certo tempo,
depois de várias leituras e análises sobre o contexto da época, descobri que a tal
letra, nada mais era do que a paródia da vida real. Coisas que eu, de pouca
idade e leitura, muito criança ainda, não compreendia. Embora vivesse os fatos:
a miséria, a fome, a necessidade, a falta de moradia e vidas digna. Chegando ao
ponto de ver irmãos meus morrerem, por motivos que só depois descobri, nas
aulas de ciências, que se ligavam àquela miséria, causada pelo abandono dos governos
da época.
Nós morávamos em uma casa de
taipa. No início era que só o telhado, porque ia sendo feita aos poucos:
colocava-se a madeira de sustentação do teto, depois pregavam-se as varas, e
por fim, tapava-se com barro. Nós, começamos a morar na casa antes de tapar.
Nessa condição, a madrugada também era sinônimo de frio e medo. Se não fosse o
radinho de pilha e as músicas tocadas no programa sertanejo do Zé Béttio, o
momento era só de medo e frio mesmo.
Eram eu e meus irmãos outros
irmãos, naquele momento quatro: eu, Vilma, Patrício e Raimundo. Uma irmãzinha
já havia ido embora como anjo, aos seis meses de vida. Foi diarreia, mas a
minha mãe dizia que tinha sido “quebranto”. Nunca a questionei, não nessa
época. O intrigante é que as condições da nossa alimentação eram muito
duvidosas quanto a ingerirmos o suficiente em nutrientes que realmente fossem
adequados a uma vida saudável.
Nós tínhamos que suportar a
ideia do amanhecer e não ter o quebra-jejum. No almoço, o cardápio repetido do
feijão, óleo e farinha. Quando tinha a farinha. Isso tudo, ao que parece, na
minha interpretação atual, pela mesma falta de “sorte” que era relatada na
música da dupla que dizia:
Eu
não quero mais pepino,
eu
não quero mais pepino.
Uma “falta de sorte” que só os coronéis do
mandonismo e clientelismo simpático sabiam, pelo preço por cabeça. Sim. Votos
que eram contados por cabeças. Depois esse tipo de domínio político adquiriu um
nome próprio. Mas, ei nem vou dizê-lo, tenho certeza que muita gente sabe. Talvez
não admita, mas, sabe.
Aliás, admitir os fatos mais tenebrosos
dessa época é algo realmente difícil. Não sei se há memórias diferentes da
minha, que não faltou caixinhas para guardar cada detalhe e trazer comigo até
hoje as mais terríveis experiências de forme da infância. Nem vou enumerar, são
muitas, e tristes. Mas, eu uso-as como lição na minha vida diária. Em especial
para observar fatos que se relacionam com a história do país e os seus reflexos
na vida do povo. Só sei que muitas das minhas amiguinhas da época, parecem ter
esquecido. Ou lavado a mente, tanto quanto a alma. Eu não.
Minhas lágrimas ainda escorrem
quando lembro dos copos de água que tomava para encher o estômago e aguentar
até 11:30 sem comer. Hora que terminava as atividades da escola, lugar onde
aprendi quase tudo da vida. Em casa eu só aprendi a gostar de ler, com minha
avó analfabeta. Ela costumava narrar histórias oralmente para mim, e eu as
descobri depois impressas nos livros. Nunca virei bruxa má, nem feiticeiro do
pé grande, nem meu nariz cresceu e nem me iludi com sapatinhos de cristal.
Essas histórias me ensinaram outros valores, apesar de nos seus enredos
constarem toda atitude originada de sentimentos ruins: inveja, maldade,
crueldade. Basta citar a Branca de Neve para compreender.
Mas, nesse tempo, o fato que
mais me chamou atenção na minha casa foi a morte de Raimundo, um dos meus
irmãos que não resistiram às mazelas de um tempo que hoje é desejado por
muitos. Ele tinha mais de uma no, quase dois. Já andava e tudo. Mas, o tal do “quebranto”
o fisgou. Passei dias tristes porque ele era um menino que eu ajudava a cuidar.
Naquele tempo, as meninas começavam cedo a ajudar a mãe. Até hoje eu acho que
esse era um costume que não devia ter acabado. Aquele quebranto matou meu
irmão. E eu até hoje lembro do seu rosto.
Ficamos três novamente. Em 1974,
nasce mais um irmão e pronto. A conta se encerra. Mas ele nasceu prematuro, de
sete meses. Minha mãe, até hoje diz que foi porque ela presenciou uma briga e
teve um “vexame”. Hoje em dia dizem por aí que é porque quando a mulher não
cuida dos dentes, tem muita cárie, aí o bebê pode nascer antes do tempo. Já eu,
pela bagagem de conhecimento que adquiri posteriormente, duvido muito que tenha
sido por isso. Acredito que a fome, as condições alimentares, a falta de um sistema
de saúde mais adequado à mulher gestante naquela época tenha sido a causa. Mas,
eu sei que isso pode ser contestado, porque tem gente que tem certeza que os
conhecimentos científicos foram desconstruídos. Vejo mesmo que alguns foram
mudados para beneficiar os salvadores da pátria que dizem estar em falência.
Realmente não está bom. Olhar o
nosso tempo e ver que as suas experiências, os fatos da sua memória, o que você
viveu e as lições que aprendeu, e até o tempo que você já viveu não podem ser considerados
como exemplo, nem para seus filhos, não é um tempo bom. Quando a verdade é
evitada de ser ouvida para se dá credibilidade a projetos no escuro, não é um
tempo bom. Nesse formato, é um tempo que fere, muito mais por dentro do que por
fora. Muito mais do que muitos nem imaginam quando nem olham ao seu redor e
somente se importam em atacar para “ganhar”, nem sei o que.
Vivemos um tempo sombrio, de farpas, de
excessiva competição pelo poder, de discursos que muito mais ferem do que
esclarecem, de sede de morte, de tortura e de sangue. De obsessiva busca pela
demonstração de superioridade, de ser melhor, mais correto, mais moralista e de
estranha polarização por um lugar no céu, seja este material ou espiritual,
tenho certeza: no terceiro dia de feijão, óleo e farinha, a frase “eu não quero
mais pepino” vai ser repetida dezenas de vezes e não será no refrão de uma
música.
Essa possibilidade é o que me
faz continuar com o gritinho de Jacó e Jacozinho:
__ Deus me livre de pepino
Antônio!
Mônica Freitas
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