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Imagem da tela de Johann Moritz Rugendas, de 1830. |
Vira e mexe alguém volta com
a teoria de que a escravidão não foi uma ideia dos ocidentais, mas sim dos
próprios africanos. Nada mais covarde e perverso do que transformar a vítima em
algoz. Vítimas, aliás, que sempre reagiram, e de inúmeras formas, ao cativeiro.
Na segunda-feira,
dia 30 (agosto de 2018), em entrevista ao programa Roda Viva, foi a vez do presidenciável
Jair Bolsonaro se sair com a seguinte frase: “se for ver a história
realmente, os portugueses nem pisavam na África. Foram os próprios negros que
entregavam os escravos (…) Faziam o tráfico, mas não caçavam os negros. Eram
entregues pelos próprios negros”.
Craque na
política do fake news, Bolsonaro contou a história que quis, não aquela
encontrada nos documentos. Esqueceu de explicar, por exemplo, que a escravidão
já estava presente na Europa. Desde a Antiguidade, o continente conheceu
diversas formas de escravidão, mas menos intensas ou disseminadas do que aquela
que surgiria a partir do século 16. A escravidão mercantil.
Por sinal, poucos
povos deixaram de conviver com alguma forma de escravidão; a África também. No
entanto, por lá, a instituição se desenvolveu paralelamente a sistemas de
linhagem e de parentesco. Os escravizados não eram entendidos, pois, como
“coisas” ou “propriedades”, nem tampouco considerados centrais para o
funcionamento regular dessas sociedades.
Já o contato luso
com a África Negra teve longa história, antecedendo em até meio século a
descoberta do Brasil. Em 1455, Zurara, em sua “Crônica de Guiné”, descrevia
atividades portuguesas na foz do rio Senegal.
Nessa época, o
interesse luso estava voltado mais para o ouro, sendo que escravos, marfim e
pimenta eram motivações secundárias. Foi com a introdução da cultura do açúcar
que a história girou: os escravizados tornaram-se fundamentais na produção
agrícola, o negócio tornou-se muito lucrativo e o interesse se voltou da
pimenta para o tráfico de viventes com os portugueses entrando continente
africano adentro.
Enquanto isso, já
em meados do 16, Lisboa era a cidade europeia que mais possuía escravos
africanos: contava com cerca de 100 mil habitantes, dos quais 10
mil eram cativos.
Em Cabo Verde,
São Tomé e Madeira desenvolveram-se ao longo do 16 e do
17 verdadeiras sociedades luso-africanas, condicionadas pelo comércio
transatlântico. Em 1582, cerca de 16 mil pessoas viviam nessas ilhas,
sendo 87% formada por escravizados.
Por volta de
1520, portugueses mantinham número razoável de feitorias na África, controlando
caravanas de cativos que vinham do baixo rio Zaire e do Benin. Dirigiam-se para
São Tomé, e, a partir de 1570, voltaram-se para o rico mercado do Brasil.
A chegada dos
portugueses à costa atlântica subsaariana no começo do 16 alteraria de
forma radical as modalidades de comércio, tanto no que se refere à escala, como
ao recurso crescente à violência. A nova conquista modificaria também
modalidades internas de guerra e de redes de relacionamento no interior de
estados africanos. Tudo com a interferência direta dos lusos, que “pisaram”
firme no continente.
Com a cultura do
açúcar, dentre os principais produtos do Império português, a situação se
modificaria ainda mais, sobretudo a partir das relações estáveis com os
congoleses. Naquele local, os portugueses destacaram-se por sua forte e estável
presença, atuando no local como clérigos, traficantes e soldados.
Também a
quantidade de almas humanas traficadas pelos portugueses cresceu e muito:
enquanto na primeira metade do século 16 o volume de africanos entrados no
Brasil não passava de algumas centenas anuais, registram-se 3.000 importações
por ano já na década de 1580.
Teve papel
fundamental a conquista de uma nova feitoria em Luanda, a qual, a partir de
1576, se transformaria em posto ativo nesse tipo de comércio. Por dois séculos
os portugueses manteriam seus “pés” bem firmes em Luanda, na região do rio
Cuanza e Benguela.
O certo é que, a
essa altura, os lusitanos estavam bem familiarizados com as populações
africanas que escravizavam. Além do mais, com o incremento do comércio do ouro
e do marfim no Oeste da África, e o crescimento da atuação econômica portuguesa
na Ásia, as relações foram ficando ainda mais corriqueiras.
Enfim, a eficácia
crescente dos traficantes portugueses do Atlântico na oferta de mão de obra, na
regularidade no suprimento de cativos vindos daquele continente e o declínio
dos preços fizeram com que, para a Europa do século 16, os africanos se
transformassem em sinônimo de mão de obra escrava e os portugueses em grandes
especialistas na arte de traficar dentro e fora da África.
Foram
transportados para as Américas 12 milhões de africanos e africanas durante todo
o período do tráfico negreiro, sendo que, desse total, 4,9 milhões tiveram como
destino final o Brasil.
O tráfico era um
negócio complexo e dominado pelos portugueses, que acabaram promovendo inúmeras
guerras e alterando a estrutura interna dos estados africanos com graves
consequências atuais. Os lusos “pisaram” muito no território africano, e
não há como tirar a responsabilidade de quem sabe que a tem.
Por Lilia
Schwarchz
Lilia Schwarcz – Professora titular do Departamento de Antropologia da USP e
global scholar na Universidade de Princeton (EUA),
é curadora-adjunta para histórias e narrativas do Masp e
organizadora, com Flavio Gomes, de “Dicionário da Escravidão e da
Liberdade: 50 Textos Críticos (Companhia das Letras, 2018)
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