PROIBIDO COMENTÁRIOS ANÔNIMOS

PROIBIDO COMENTÁRIOS ANÔNIMOS
Não publicamos comentários que não sejam identificados!

terça-feira, 30 de outubro de 2018

[HISTÓRIA] A DIVISÃO E A CONSTITUIÇÃO DA BARBÁRIE NO PAÍS DOS TAPUIA




É limitado o número de brasileiros e nordestinos que têm o conhecimento de que desde 1500, no início da colonização do território Pindorama (primeiro nome do Brasil), já havia uma divisão entre as etnias indígenas que viviam nas diversas regiões, em especial com o lugar que hoje denomina-se de Região Nordeste. Incluindo-se o momento em que os lusitanos chegaram à terra que compreendiam como parte das “Índias”, termo que indicava os territórios a serem conquistados pelo projeto de navegação dos europeus em crise econômica.

Arqueólogos e antropólogos, dentre os quais citam-se, respectivamente Valdeci dos Santos Júnior (2008) e João Pacheco Oliveira (2004), apontam que quando os portugueses chegaram ao Pindorama, existiam aproximadamente seis milhões de povos originários da terra. Estes falavam cerca de 600 línguas diversas em todo o território. Mas, na parte Nordeste, estavam situados os povos “tapuias”. Este termo é explicado por Pires (2002) como sendo definido pelos Tupi e significa “o selvagem”, o bárbaro, os inimigos contrários. Pode ser também identificado como o nome de uma das classificações dadas pelos portugueses para os povos ameríndios em dois grandes grupos: os Tapuia e os Tupi. Estes ocupavam os litorais e matas tropicais, aqueles os interiores e a caatinga.

Os historiadores, arqueólogos e antropólogos são consensuais em compreender que alguns Tapuia fugiram de outras regiões do Brasil onde a colonização chegara e os expulsara. Da mesma forma, já anteriormente aos europeus, esses grupos já haviam sido expulsos pelos Potiguara – que os empurraram do litoral para os interiores.

Em síntese, os Tapuia eram os povos que habitavam a região Nordeste do Pindorama, território que no ano de 1527 foi nomeado definitivamente como Brasil, após ter passado por uma sequência de mudanças de nomes. E um dos viajantes portugueses da época, Gabriel Soares de Souza, deixa isso muito bem assinalado em um de seus registros, chamado de Tratado Descritivo do Brasil, escrito em 1587, quando menciona que os Aimoré tinham origem em outros gentios que eram chamados de “tapuias”.

As línguas faladas pelos povos Tapuia foi o primeiro motivo de separação deste povo dos indígenas brasileiros das outras regiões, além de serem também mais selvagens, dotados de valentia mais intensa, tanto que foram chamados de bárbaros, embora, estudiosos atuais tenham explicações pertinentes para não os conceber como povos bárbaros.

Segundo Santos Júnior (2008), os troncos linguísticos falados pelos Tapuia do sertão do Nordeste eram quatro: o Tupi, o Macro-Jê, o Aruaque e um grande grupo de línguas consideradas independentes, atualmente classificada como Tarairiú. Os que viviam no litoral falavam línguas do tronco tupi e habitavam toda a costa litorânea que na atualidade se situa desde São Paulo até o Ceará. Os “guaranis” se situavam desde onde hoje se tem a costa paulista até o Rio Grande do Sul.

Esse povo tupi foi, segundo Oliveira e Freire (2006), os primeiros a terem contatos com os europeus, por viverem no litoral, também foram os primeiros a serem submetidos aos valores cristãos, aos códigos e linguagens do colonizador e à ruptura de seus aspectos culturais. Já os Tapuia, povos que eles denominavam de “bárbaros” e de língua de difícil compreensão, passaram por esse processo bem mais tarde, e de forma distinta. Putoni (2002) afirma que a política indigenista do índio do Nordeste foi totalmente diferente da dos povos Potiguara.

Sendo os Tapuia índios do interior; habitavam desde a margem oeste do Rio São Francisco, que agora é chamada de Bahia, até os sertões de vários outros estados nordestinos.

A pesquisa de Santos Júnior (2008) esclarece que a compreensão de que o Tapuia é uma denominação étnica, mesmo não sendo considerado etnônimo, é construída ao longo do século XVII, quando surge a noção de sertão como espaço imaginário. Foi um termo que recebeu várias grafias, desde a mais antiga à mais moderna: Tapuyos, Tapuhias, Tapuzas, Tapyyia, Tapuya, Tapuy ou Tapoyer, que hoje é Tapuia. Percebe-se que as diferenças que separam o “tupi” do “tapuia” parecem ser mais voltadas para o campo linguístico do que mesmo para o aspecto que demarca a identidade étnica no passado.

Mas, foi isso que determinou a presença do povo Tapuia aqui no sertão nordestino, lugar que Putoni (2002) define de forma muito clara como o País dos Tapuia. Isto porque todo o território do sertão era habitado por esses autóctones. Eles viviam de caça e mudavam frequentemente de lugar, procurando os melhores ambientes para a sobrevivência.
Os aspectos físicos também eram diferentes dos que tinham os outros índios brasileiros.

Os Tapuias possuíam semblante ameaçador, corriam iguais às feras, por isso eram muito temidos. Eram inconstantes, fáceis de serem levados a fazer o mal. Eram fortes, carregavam nos ombros grandes pesos. Ao irem para guerra, marchavam em silêncio, mas no embate faziam bastante alarido, jogando setas envenenadas das quais os feridos jamais escapavam (SILVA; PUFF, 2013, p. 1898).

Lopes (2003) complementa dizendo que são homens e mulheres de corpo robusto, de ossos fortes e cabeça grande, de cor da pele atrigueirada e cabelos pretos que parece-lhes trazer um boné na cabeça. Mas, eram vistos pelos colonizadores de forma mais fortemente animalizada do que os outros povos do Brasil.
Quanto aos costumes e culturas, Lopes (2003) descreve que o povo Tapuia seguia a mesma tradição dos demais indígenas das outras regiões do Brasil. “Todos, inclusive as crianças, costumavam pintar o corpo, utilizando-se de uma tinta preta, extraída do jenipapo, e vermelha, do urucu. Andavam nus, porém, com as genitais cobertas” (LOPES, 2003, p. 278). Eles também usavam enfeites com perfurações nas orelhas, nariz, bochechas e artefatos de penas de aves.
Segundo Macedo (2004), estudos contemporâneos indicam a existência de três grupos culturais distintos aqui no Nordeste, denominado o lugar dos Tapuia: os Cariri, os Tarairiu e os Jê, além de outros grupos isolados que não foram classificados.
Pode-se fazer relação bastante estreita das discriminações que são direcionadas ao nosso povo nordestino desde a colonização até a atualidade, como base nas origens coloniais. Putoni (2002) enfatiza que é muito pertinente registar e analisar o princípio que afeta todo o processo de divisão dos indígenas do Brasil, entre os das outras regiões e os do Nordeste. Segundo esse autor de um estudo sobre a Guerra dos Bárbaros, os Tapuia, não somente foram concebidos como selvagens por serem sertanejos e muito menos pelas características físicas e culturas que eram diferentes.

O ponto principal foi a RESISTÊNCIA às alianças com os europeus quando estes queriam ampliar os territórios para fins de exploração e os índios não aceitavam. A resistência desses autóctones teve como consequência o corte nas legislações e na política indigenista e os intensos massacres que mataram uma quantidade enorme de índios nos séculos XVII e XVIII.

De forma clara, Putoni (2002) cita que muitos Tupi se tornaram vassalos, eles aceitavam fácil o domínio português; os Tapuia resistiam e por isso estavam sujeitos a perseguições, massacres e fugas e mortes. A divisão indígena entre os Tupi e os Tapuia causou uma bipolaridade na legislação portuguesa: os índios de outras regiões eram coparticipantes do processo, enquanto a política destinada ao Tapuia era de crueldade e extermínio.

Não há dúvidas de que a barbárie ao povo nordestino não está encravada em marcos históricos recentes, mas, faz parte de um processo longo e cruel. A a luta por um lugar no espaço pelo nordestino é o que comprova a resistência de quem hoje se autoafirma como indígena do Nordeste, pois resistir faz parte do passado e do presente como forma de se dizer NÃO A BARBÁRIE desses povos!


Por Mônica Freitas



BIBLIOGRAFIA BÁSICA



FREITAS, M. M. Relatos sobre o massacre de 70 índios na serra de Portalegre/RN: argumentação em discursos de liderança indígena e alunos do ensino fundamental. Pau dos Ferros, 2018, 297 fls. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras em rede nacional). Programa de Pós-Graduação em Letras, Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. 

LOPES, F. M. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. Natal/RN: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 2003.

MACEDO, H. A. M. Vivências índias, mundos mestiços: relacionamentos interétncos na freguesia da gloriosa santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século XX. Monografia (Conclusão do Curso de História). Caicó: UFRN, 2002.

OLIVEIRA; J. P.; FREIRE, C. A. R. A Presença Indígena na Formação do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

OLIVEIRA, J. P. (org). A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2 ed. Rio de Janeiro: Contra Capa – LACED, 2004.

PUNTONI, P. A Guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: FAPESP, 2002.

SANTOS JÚNIOR, V. Os índios tapuias do Rio Grande do Norte: antepassados esquecidos. Mossoró/RN: UERN, 2008.

SILVA, M. J. M.; PUFF, F. R. Influências indígenas na cultura da região oeste do Rio Grande Do Norte e comunidades remanescentes. IX Congresso de Iniciação Científica do IFRN. Natal: Campus Central do IFRN. Período do evento: 05 e 06 de julho de 2013.

SOUZA, G. S. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Salvador: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro – CDPB (Impressão de 2013). Obra Original, 1587.



segunda-feira, 22 de outubro de 2018

[CRÔNICA] TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO


— Ele disse numa entrevista que fechava o Congresso no dia em que tomasse posse.
— Rapaz... Sou contra fechar o Congresso. Mas é melhor do que a roubalheira do PT.
— Ele também disse que tinha que matar 30 mil pro Brasil dar certo.
— Feio matar 30 mil. Mas é melhor do que a roubalheira do PT.
— Aqui ele fala que prefere filho morto a filho gay.
— Qualquer filho é melhor do que a roubalheira do PT.
— Sua frase não tem muito sentido.
— Melhor não ter muito sentido do que a roubalheira do PT.
— Aqui ele falando que é a favor da tortura.
— Sou contra tortura. Mas é melhor do que a roubalheira do PT.
— Será? Aqui, 2018, ele falando que o livro de cabeceira dele é do Brilhante Ustra, o torturador que levou duas crianças de 5 e 4 anos, pelas mãos, para verem o pai e a mãe torturados numa sala do DOI-Codi. A mãe estava nua e vomitada, presa à cadeira do dragão.
— Melhor levar criança pra ver pais torturados do que pra ver a roubalheira do PT.
— Frase da mãe torturada: “Minha filha perguntava: ‘Mãe, por que você ficou azul e o pai verde?” Ela continua: “Meu filho até hoje lembra do momento em que eu falava ‘Edson’ e ele olhava para mim e não sabia que eu era a mãe dele. Estava desfigurada”.
— E quem desfigurou o Brasil? A roubalheira do PT!
— Se só roubalheira conta... Ele tinha uma funcionária fantasma na Câmara, paga com dinheiro do povo para dar água aos cachorros dele, na casa de praia em Angra dos Reis.
— O que é uma funcionária fantasma perto da roubalheira do PT?
— Ele e os filhos, que se dedicam unicamente à política, têm 13 imóveis no valor de R$ 15 milhões de reais. Não é estranho?
— Muito mais estranho é a roubalheira do PT.
— Em um só ano, um dos filhos dele gastou R$ 40 mil reais de verba parlamentar com passagens pro Rio Grande do Sul, onde morava a namorada e para Santa Catarina, onde tem amigos.
— O importante é acabar com a roubalheira do PT. Tudo menos a roubalheira do PT!
— Não é o que acham os principais órgãos de imprensa do mundo. Olha essa lista de jornais e revistas alertando pro perigo desse cara ser eleito. The Economist, New York Times, The Guardian, Deutsche Welle.
— Tudo mídia comunista comprada com dinheiro da roubalheira do PT.
— Ué, por que a roubalheira do PT comprou toda a mídia internacional e se esqueceu da brasileira, que continua tratando o cara como um candidato normal e um risco à democracia igual ao de Haddad?
— Tática de guerrilha da roubalheira do PT. A mídia brasileira está como os vietcongs, escondida debaixo da terra, disfarçada de arbusto para atacar de surpresa no final e garantir a boquinha na roubalheira do PT.
— Sei. Mas vamos supor só por um momento que a imprensa global não esteja comprada pelo dinheiro da roubalheira do PT. Vamos supor que eles estejam certos em apontar o abismo que ele representa. Vamos supor que ele ganhe e ponha em prática o que vem dizendo que porá desde que começou na política. Vamos supor que ele persiga minorias ou faça vista grossa para quem perseguir. Que ele censure. Torture. Mate.
— Importante é acabar com a roubalheira do PT.
— E se for você o torturado? Você na cadeira do dragão.
— Enquanto eu tiver meu crânio esmagado pelo menos não vou pensar na roubalheira do PT.
— E se você for morto?
— Estarei livre, finalmente, da roubalheira do PT.
           
                                     Por Antônio Prata
                            Faculdade de Sao                                       Paulo
                             21 de outubro. 2018.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

[CRÔNICA] O MEDO





Primeiro é a sensação de estar sentindo o frio na barriga, os arrepios torturantes, a dor. Aí o suor aparece descendo na vereda mais aprofundada que fica ao meio das costas. Fechamos os olhos e na primeira brisa suave vai diminuindo os devaneios da mente. Mas, quando recai aquela alvoroçada percepção de que tudo pode ser real e que podemos não suportar, a brisa vira furacão e começamos a rodopiar pelos lugares mais atrapalhados. A repulsa só aumenta e o próximo passo é tentarmos fugir igual o diabo foge da cruz, como dizem alguns que veem o maligno em quase tudo.

Sozinhos, com visão de futuro escura, turva e inalterável, saímos de fininho, andamos mais depressa, corremos e até voamos nas asas da imaginação para não enfrentar situações que às vezes são muito fáceis de prever. Ajuda de santos, milagres, a presença do próprio Deus ou aquele fenômeno que também é inexplicável chamado de sorte são bem-vindos e sempre nos auxiliam dizendo: “Vá em frente!”. Aí a brisa suave volta com todo o seu frescor. Ganhamos vida, o sol reaparece e a chuva somente cai para regar as flores que precisam mostrar as cores de suas pétalas. E os jardins floridos, na maioria das vezes nos mostram como estávamos enganados.

Mas, nem sempre é possível contar espíritos do bem. Há os que vêm da luz profunda que queima almas. Quando o próprio dono das trevas resolve manifestar suas trevas e acalorar o temor, ele traz consigo uma bagagem atupetada de experiências que narram a história de sonhos desfeitos, de vidas ceifadas, de cortes profundos e de cicatrizes que envergonham. Ali não há milagres, não há santos, não há sorte e muito menos Deus. O que existe mesmo é o tom negativo da morbidez e do macabro sentimento que derruba vidas.

Aí fechamos o casulo do sonho, partimos para uma vida mundana, onde espalhar desesperança vai se configurando em metas diárias, horárias e instantâneas. É possível sentir que, ao sermos tomados por esse sentimento medonho, que quase sempre não podemos controlar, deixamos de ouvir na mesma medida em que falamos demais. Ele nos controla ao mesmo nível em que queremos controlar o outro e também fazê-lo discípulo do que é mais horroroso e temível intimamente, o nosso próprio medo.

Sentimos o medo como aquele ser versátil que pode nos manipular e ser manipulado a cada instante, para cada circunstância. O medo é um antídoto, às vezes. E tem como função, a preparação para o caos; mas, na iminência da glória, quando vencido, é a preparação para a vida em abundância.

Por Mônica Freitas


quarta-feira, 3 de outubro de 2018

[HISTÓRIA] 12 MILHÕES DE AFRICANOS E AFRICANAS TRANSPORTADOS PARA AS AMÉRICAS A PARTIR DO SÉCULO XVI



Imagem da tela de Johann Moritz Rugendas, de 1830. 

Vira e mexe alguém volta com a teoria de que a escravidão não foi uma ideia dos ocidentais, mas sim dos próprios africanos. Nada mais covarde e perverso do que transformar a vítima em algoz. Vítimas, aliás, que sempre reagiram, e de inúmeras formas, ao cativeiro.

Na segunda-feira, dia 30 (agosto de 2018), em entrevista ao programa Roda Viva, foi a vez do presidenciável Jair Bolsonaro se sair com a seguinte frase: “se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos (…) Faziam o tráfico, mas não caçavam os negros. Eram entregues pelos próprios negros”.

Craque na política do fake news, Bolsonaro contou a história que quis, não aquela encontrada nos documentos. Esqueceu de explicar, por exemplo, que a escravidão já estava presente na Europa. Desde a Antiguidade, o continente conheceu diversas formas de escravidão, mas menos intensas ou disseminadas do que aquela que surgiria a partir do século 16. A escravidão mercantil.

Por sinal, poucos povos deixaram de conviver com alguma forma de escravidão; a África também. No entanto, por lá, a instituição se desenvolveu paralelamente a sistemas de linhagem e de parentesco. Os escravizados não eram entendidos, pois, como “coisas” ou “propriedades”, nem tampouco considerados centrais para o funcionamento regular dessas sociedades.

Já o contato luso com a África Negra teve longa história, antecedendo em até meio século a descoberta do Brasil. Em 1455, Zurara, em sua “Crônica de Guiné”, descrevia atividades portuguesas na foz do rio Senegal.

Nessa época, o interesse luso estava voltado mais para o ouro, sendo que escravos, marfim e pimenta eram motivações secundárias. Foi com a introdução da cultura do açúcar que a história girou: os escravizados tornaram-se fundamentais na produção agrícola, o negócio tornou-se muito lucrativo e o interesse se voltou da pimenta para o tráfico de viventes com os portugueses entrando continente africano adentro.

Enquanto isso, já em meados do 16, Lisboa era a cidade europeia que mais possuía escravos africanos: contava com cerca de 100 mil habitantes, dos quais 10 mil eram cativos.

Em Cabo Verde, São Tomé e Madeira desenvolveram-se ao longo do 16 e do 17 verdadeiras sociedades luso-africanas, condicionadas pelo comércio transatlântico. Em 1582, cerca de 16 mil pessoas viviam nessas ilhas, sendo 87% formada por escravizados.

Por volta de 1520, portugueses mantinham número razoável de feitorias na África, controlando caravanas de cativos que vinham do baixo rio Zaire e do Benin. Dirigiam-se para São Tomé, e, a partir de 1570, voltaram-se para o rico mercado do Brasil.

A chegada dos portugueses à costa atlântica subsaariana no começo do 16 alteraria de forma radical as modalidades de comércio, tanto no que se refere à escala, como ao recurso crescente à violência. A nova conquista modificaria também modalidades internas de guerra e de redes de relacionamento no interior de estados africanos. Tudo com a interferência direta dos lusos, que “pisaram” firme no continente.

Com a cultura do açúcar, dentre os principais produtos do Império português, a situação se modificaria ainda mais, sobretudo a partir das relações estáveis com os congoleses. Naquele local, os portugueses destacaram-se por sua forte e estável presença, atuando no local como clérigos, traficantes e soldados.

Também a quantidade de almas humanas traficadas pelos portugueses cresceu e muito: enquanto na primeira metade do século 16 o volume de africanos entrados no Brasil não passava de algumas centenas anuais, registram-se 3.000 importações por ano já na década de 1580.

Teve papel fundamental a conquista de uma nova feitoria em Luanda, a qual, a partir de 1576, se transformaria em posto ativo nesse tipo de comércio. Por dois séculos os portugueses manteriam seus “pés” bem firmes em Luanda, na região do rio Cuanza e Benguela.

O certo é que, a essa altura, os lusitanos estavam bem familiarizados com as populações africanas que escravizavam. Além do mais, com o incremento do comércio do ouro e do marfim no Oeste da África, e o crescimento da atuação econômica portuguesa na Ásia, as relações foram ficando ainda mais corriqueiras.

Enfim, a eficácia crescente dos traficantes portugueses do Atlântico na oferta de mão de obra, na regularidade no suprimento de cativos vindos daquele continente e o declínio dos preços fizeram com que, para a Europa do século 16, os africanos se transformassem em sinônimo de mão de obra escrava e os portugueses em grandes especialistas na arte de traficar dentro e fora da África.

Foram transportados para as Américas 12 milhões de africanos e africanas durante todo o período do tráfico negreiro, sendo que, desse total, 4,9 milhões tiveram como destino final o Brasil.

O tráfico era um negócio complexo e dominado pelos portugueses, que acabaram promovendo inúmeras guerras e alterando a estrutura interna dos estados africanos com graves consequências atuais. Os lusos “pisaram” muito no território africano, e não há como tirar a responsabilidade de quem sabe que a tem.

Por Lilia Schwarchz


Lilia Schwarcz – Professora titular do Departamento de Antropologia da USP e global scholar na Universidade de Princeton (EUA), é curadora-adjunta para histórias e narrativas do Masp e organizadora, com Flavio Gomes, de “Dicionário da Escravidão e da Liberdade: 50 Textos Críticos (Companhia das Letras, 2018)