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domingo, 5 de janeiro de 2020

Crônica

Já rasgaram tanto a Constituição, mas tanto, que não tem mais o que rasgar. Virou pó. A metáfora perdeu a validade, por desgaste natural. 

E na falta da possibilidade de continuar rasgando a Constituição, rasga-se livros. Esse "montão de amontoados" de palavras inúteis que só servem para torrar os nossos neurônios. 

Rasga-se o Código Penal, rasga-se a CLT, rasga-se o manual básico de jornalismo, rasga-se o contrato social que não pode rasgado porque nem está em papel. 

O mundo anda rasgando muita coisa por aí também. A ONU praticamente foi jogada em um fragmentador de papel. Tudo o que eles dizem e publicam não se escreve. Se escreverem, ato contínuo, rasga-se. 

Vivemos a era do rasgação. Rasga-se as famílias, rasga-se a tolerância, rasga-se o respeito, rasga-se a possibilidade de sonhar. 

Metáfora de si mesma, a palavra 'rasgar' debuta como estrela de cinema em nossa surrada cadeia significante. 

"Chega rasgando", diz o coach para seu pupilo que busca o primeiro milhão e sua frio porque vai se reunir com o CEO da empresa. 

Tem o assessor de politico também que vive "rasgando a seda" do patrão. É pago para isso.

Aliás, eu trocaria fácil "rasgar a seda de patrão", por "rasgar o patrão". Essa tradição brasileira poderia ser corrigida não fosse a maldita palavra "seda".

Mas patrão, o brasileiro não rasga. Brasileiro gosta de patrão. Acha que o patrão é uma pessoa de sucesso que paga o seu salário.

O Brasil tinha que rasgar com essa tradição de subserviência explícita. Rasgar o 'dotô', rasgar a concentração de renda pornográfica, rasgar a Rede Globo que vive rasgando a verdade e o nosso cérebro.

Mas aqui, nesta terra que não é do nunca, mas é do "sempre", rasgar os próprio direitos é que é gostoso. Sem Previdência Social? Viva! Sem direitos trabalhistas? Show! Sem direito a um judiciário digno do nome? É nóis!

Rasgar é o maior barato. Quem nunca rasgou a fantasia? Saltou nas tamancas? Caiu dentro?

Festas populares também são boas para sair "rasgando" por aí.

No carnaval, veremos o país inteiro gritar "Fora, Bolsonaro" para na quarta-feira de cinzas, todos voltarem a trabalhar resignados, pagando seus impostos com gosto, rasgando e jogando no lixo a própria indignação que, afinal, foi apenas para dar o clima da festa.

Quem paga imposto, aliás, é o brasileiro pobre, claro, porque o brasileiro rico rasga seu prontuário do imposto de renda (ou frauda, com despesas de dentista e dependentes que não existem).

É uma rasgação geral. Por isso, foi tão fácil rasgar a Constituição.

No Brasil, a arte de rasgar vai bem, obrigado. Brasileiro gosta de verbos insinuantes, 'tripudiar', 'intimidar', 'sacanear'. Nada de 'respeitar', essa coisa chata e sem sal.

'Rasgar' tem cifras tensivas sedutoras, lascivas, cadenciadas. É um ato subversivo, mas desacelerado: não se 'corta', se rasga. Separa-se duas partes de um todo, mas de maneira quase sádica, saboreando o processo.

'Rasgar' também pressupõe a presença das 'mãos', metáfora máxima da ação humana. Quando se rasga a Constituição, não se a despreza ou a ignora, pura e simplesmente: trava-se uma relação passional com ela, dolorosa, ambígua, contínua, com revestimentos de ódio e despeito.

Não à toa este sentido estava presente de maneira literal em nosso destino histórico: rasgou-se o abdome do político que mais representa a ruptura cortante com todo e qualquer valor civilizatório sofregamente já costurado no tecido social do Brasil.

Rasgou-se a civilização.

O Brasil virou um fiapo, um amontoado de estopa pronto a dar brilho nos carros milionários de nossa elite reluzente que foi quem mais lucrou com tudo isso. É só passar a cera do nosso jornalismo branco que o brilho virá.

Não à toa, "passar o pano" também se tornou outra metáfora largamente usada nas codificações públicas de turno. É preciso limpar a sujeira deixada diariamente por nossos governantes. O jornalismo está cumprindo abnegadamente este papel, papel que tento em vão rasgar todos os dias nessas intermináveis crônicas de costumes.

Diante de tudo isso, o brasileiro só não rasga dinheiro porque o dinheiro acabou. E porque se rasgasse dinheiro, poderia ser confundido com um louco - o que seria um avanço fora de lugar dadas as atuais circunstâncias.

Só me resta pedir desculpas a você, querido leitor, por não poder rasgar esta crônica, já que ela é digital. Posso sugerir no entanto, que a imprima. Assim, poderá rasgá-la com todo amor e degustar devidamente o fecho trágico desses dez minutos de leitura pelos quais inadvertidamente passou.

Só não rasquem a seda de quem quer que seja, por favor. Sedas ainda são úteis no mercado do esquecimento.

(Via página Gustavo Conde/Facebook)

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